"A paisagem que já não existe", Fábio Lucas
Quando viajo de ônibus, as paisagens pela janela me fazem pensar muito em mim mesmo, na história que não vivi e que ao mesmo tempo considero minha. Vejo as serras e as árvores, uma casa isolada, um cercado e uma boiada, elementos que compõem o quadro descrito por minha mãe ao falar de sua infância na roça. Eu não sei o que era ser muito pobre, carregar sem sapatos as sacas de café por entre as matas e atravessar rios para estudar. Mas aquela paisagem pela janela do ônibus traz a história de minha mãe como uma imagem estampada e em movimento para meus olhos e para minha memória.
A história de minha mãe transformou-se em minha história. Não só relembro, eu a sinto, refaço cada descrição do som da voz dela reverberando em minha cabeça. Um poço me lembra do balde de água que carregava para o casebre onde viviam onze pessoas. Um rio permite inventar a imagem dos banhos de rio de meus tios e recriar do meu jeito seu relato do dia frio em que acompanhou meu avô para resgatar a vaca leiteira que atravessou as águas para ter cria na outra margem.
Eu lembro, crio e recrio histórias e memórias vendo as montanhas entre Paraná e Santa Catarina, as serras no caminho do litoral e as estradas de terra entre uma cidade e outra do interior. Agora lembro das aulas de História: como indígenas e seus algozes bandeirantes percorriam por esta mata densa e um relevo tão íngreme? Quantas mortes, medos, lutas e dores naqueles lugares marcaram a ocupação da terra e a criação das fronteiras! Quantas mortes ainda existem e ficam encobertas pelos galhos e sisais?
Esquecer faz parte. Não sei a idade geológica da paisagem montanhosa ou os termos científicos dos fósseis que possivelmente ali estiveram ou estão escondidos. Também não recordo da cultura dos povos indígenas para compor a imagem mental do que vestiam ou como viviam dentre aquele local.
Sinto cheiro de mato, olho para o céu azul e as curvas das montanhas ao longe. Lembro de minha primeira viagem de trem que fiz com minha vó. Eu não conseguia ver os locais por causa da rápida movimentação. Mas as estações chamavam minha atenção pelas construções antigas e pela quantidade de gente diferente entrando e saindo. Eu tinha curiosidade em saber da mulher negra que levava um balde de roupa, do senhor com chapéu e mala verde e das crianças chorando no colo da mãe jovenzinha sentada no fundo do vagão.
Sempre fui curioso, penso demais, recordo e crio imagens de paisagens que já não são as mesmas. Os trens de São Paulo não me causam agora a mesma curiosidade, pois abaixo a cabeça com medo de que pensam que invado a privacidade alheia. Tudo é rápido e frio. Mesmo assim, as paredes pichadas me lembram de que há inconformismo e os carros do trânsito mostram as prisões individuais em que vivemos.
Assim como tudo passa rápido e se mancha pela janela em borrões com a velocidade de um ônibus ou de um trem, as paisagens da memória são construídas de acordo com a velocidade da vida. Divagamos, sentimos, e mesmo com o pensamento ao longe, nos aproximamos de nós mesmos, de nossa história, de nossa memória e de nossos sentimentos.
Que bom que as paisagens mudam... Assim a vida se desenrola e a mente cria nossas memórias entre sentimentos e esquecimentos.
Fábio Lucas, 2020.